A PEC do Plasma: Desafios Éticos, Legais e de Regulação no Brasil

A Proposta de Emenda Constitucional – PEC nº 10/2022, que tramita no Senado, visa alterar o artigo 199 da Constituição Federal e criar uma legislação específica para dispor sobre as condições e os requisitos para a coleta e o processamento de plasma humano, com o propósito de desenvolver novas tecnologias e produzir biofármacos destinados ao Sistema Único de Saúde (“SUS”). Após recente aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça (“CCJ”) do Senado, em 4 de outubro de 2023, a emenda, mais conhecida como a “PEC do Plasma”, desencadeou um intenso debate no Brasil, levantando questões éticas e legais fundamentais: remuneração do doador de plasma, compatibilidade com a legislação nacional, comercialização internacional do plasma e possíveis repercussões no SUS. O julgamento pelo Senado aguarda, justamente, o amadurecimento dessas questões.  

Em síntese, o texto da PEC autoriza tanto a iniciativa pública quanto a privada a processar e comercializar plasma humano com a finalidade de uso laboratorial, desenvolvimento de novas tecnologias e produção de medicamentos hemoderivados1. Por enquanto, a remuneração do doador de plasma permanece proibida. 

A Constituição Federal brasileira (artigo 199, §4º), proíbe a comercialização de órgãos, tecidos e substâncias humanas, incluindo sangue e seus derivados. Também a Lei que instituiu a Política de Sangue, reforça essa proibição, vedando expressamente a comercialização da coleta, processamento, estocagem, distribuição e transfusão de sangue, componentes e hemoderivados (Lei nº 10.205/2001).  

O controle e a fiscalização de sangue e hemoderivados conta com o papel fundamental da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (“ANVISA”, criada pela Lei nº 9.782/1999), que estabelece normas de Boas Práticas de Fabricação para a indústria de hemoderivados, monitora o transporte de sangue, seus componentes e hemoderivados, e realiza inspeções sanitárias nas empresas envolvidas na produção de produtos de terapia avançada, que incluem produtos derivados do sangue, como Produtos de Terapia Celular Avançada, de Terapia Gênica e Produtos de Engenharia de Tecidos.  

Essas inspeções da ANVISA garantem que as empresas atendam a todas as regulamentações e normas de segurança estabelecidas, proporcionando uma garantia de qualidade e segurança para os pacientes que dependem desses produtos.  

Os medicamentos derivados do plasma humano são produtos de alto custo, pois constituem um grupo único e diferenciado dentro das especialidades farmacêuticas. Um frasco contendo apenas cinco gramas de imunoglobulina, hemoderivado do plasma, tem um custo médio de R$ 2 mil reais. Além disso, o Ministério da Saúde informou que investe cerca de R$ 850 milhões anualmente na aquisição de 20 antirretrovirais essenciais para o tratamento da AIDS. 

Para ilustrar os desafios financeiros envolvidos, segundo uma pesquisa de 2018 realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (“IPEA”), houve um aumento significativo nos gastos com esses medicamentos, registrando um crescimento de 151,9%, passando de R$ 435,9 milhões para R$ 1,1 bilhão. 

A PEC do Plasma pretende justamente alterar esse cenário. 

O debate em torno da proposta é sensível e polêmico, pois envolve uma série de interesses conflitantes. A preocupação central gira em torno da possibilidade de bancos de sangue privados comercializarem o material que coletam com empresas internacionais de hemoderivados, em vez de disponibilizá-lo gratuitamente ao SUS. Os críticos da emenda argumentam que o uso do plasma como commodity pode fazer com que as doações sirvam à demanda internacional, sem a garantia de que o medicamento produzido com a matéria-prima do Brasil abasteça o próprio país.  

O Governo Federal parece não estar tão entusiasmado com o texto. Em nota ressaltou que o plasma doado atualmente no Brasil é destinado unicamente às necessidades da população brasileira sendo convertido em medicamentos que beneficiam diretamente os cidadãos. O SUS atende integralmente todos os pacientes que necessitam de hemoderivados, assegurando acesso igualitário a esses tratamentos. A principal inquietação reside na possibilidade de que essa prática possa beneficiar principalmente os mais ricos, potencialmente criando disparidades no acesso à saúde com base em recursos financeiros. 

Embora a proposta aprovada não tenha incluído a remuneração dos doadores de sangue, o debate nesse sentido ainda persiste. Alguns argumentam que a PEC do Plasma poderia comprometer o caráter altruísta e solidário inerente à doação de sangue, levantando preocupações sobre a segurança nacional.  

Por outro lado, os defensores da PEC alegam que o país não tem capacidade de processar a substância para produzir outros insumos. A Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (“Hemobrás”), empresa estatal vinculada ao Ministério da Saúde, criada para suprir essa deficiência, enfrenta dificuldades para atender à crescente demanda do mercado. Conforme dados da ANVISA, em 2020 apenas 278 bolsas foram encaminhadas à Hemobrás.  

A justificativa para a aprovação da PEC do Plasma se baseia no problema de desperdício de bolsas de plasma no Brasil. Em 2020, o Tribunal de Contas da União (“TCU”) notificou o Ministério da Saúde para resolver essa questão. Segundo o TCU, desde 2017, o Brasil perdeu uma quantidade significativa de plasma, correspondendo a quase 600 mil litros, equivalente ao material coletado em 2.718.067 doações de sangue. A regulamentação da coleta de plasma envolvendo o setor privado é vista como uma solução para lidar com essa escassez e, potencialmente, para fornecer medicamentos hemoderivados de forma mais eficiente ao SUS.  

No dia 17 de outubro, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, declarou que a votação da PEC do Plasma não ocorrerá no Plenário até que seja solucionado um impasse relacionado à sua análise na CCJ. Essa decisão veio após uma questão de ordem apresentada pelo senador Marcelo Castro (MDB-PI), sobre uma suposta divergência entre o texto final, votado no dia 4 de outubro na CCJ, e as informações divulgadas sobre o relatório e registradas nas notas taquigráficas da reunião. Enquanto esse impasse persiste, as controvérsias em torno das emendas propostas permanecem, deixando o futuro da regulamentação da coleta de plasma no Brasil em aberto. 


Referências

VIEIRA, FABIOLA SULPINO. Evolução do gasto com medicamentos do sistema único de saúde no período de 2010 a 2016. Rio de Janeiro: Ipea, 2018.

CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Brasil celebra o Dia Mundial de Combate à Aids com boas notícias. Notícias, 2012. Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2012/04_dez_dia_luta_aids.html>. Acesso em: 20 de outubro de2023.