Pós-modernidade e participação: a relevância do processo administrativo e sua legislação

Desde o iluminismo do século XVIII, a modernidade pode ser compreendida como o esforço de apreender o mundo, de explicá-lo pelas lentes da razão. Esse projeto produziu grandes mapas da realidade, com catálogos minuciosos da vida ao redor: sociedades, animais, vegetais e minerais. Reinos, famílias e espécies, organizadas em subclassificações infinitas, sistêmicas e totais. No direito, a aventura moderna culminou com a ascensão do Estado, como instância de ordenação social, e da lei como seu produto central. Grandes codificações, com a pretensão de regular a vida de modo integral: encapsulando-a desde o nascimento, até depois da sua morte.

A pós-modernidade é, antes de tudo, o reconhecimento do fracasso daquele projeto. A constatação de que a realidade escapa a qualquer esquema pré-concebido pela razão – que já não se apresenta mais infalível, dada que prisioneira do inconsciente. Assim, desde o pós-guerra testemunha-se a assimilação das ambivalências nas ciências, costumes e cultura, com o declínio de instituições totais, políticas ou religiosas. Um de seus legados é uma era pós-utópica, carente de pontos de referência para o planejamento da vida em sociedade. Tal fato, aliado a constantes inovações tecnológicas de comunicação em rede, tem sido o combustível de aceleradas transformações.

Incerteza, insegurança e mutação passam a ser as marcas do presente pós-moderno: variam constantemente valores, regras e comportamentos. É impossível dizer se os parâmetros de ontem valerão amanhã.

Desde o final do século XX, esse ambiente tem produzido regras morais e jurídicas em sintonia com o seu tempo: menos concretas, mais abstratas e, quando específicas, mais revogáveis, adequadas a uma realidade sempre em transformação. Inovações tecnológicas demandam também a revisão contínua das regras do jogo, que precisam dar novas respostas a novas perguntas. Desse modo, constata-se hoje a erosão da legalidade², paulatinamente substituída por um direito pós-moderno³, despido dos atributos mais marcantes da ordem jurídica tradicional: unidade e estabilidade.

Para dar conta da demanda pós-moderna por regras que sejam, ao mesmo tempo, novas, maleáveis e descartáveis, dois fenômenos contraditórios e paralelos se põem em marcha: de um lado, a proliferação de dispositivos legais e constitucionais genéricos e principiológicas; e, de outro, regras infralegais fragmentadas e específicas, originadas em fontes cada vez mais diversas: agências, secretarias, estados, municípios. E com a multiplicação das fontes do direito, as contradições são inevitáveis. Embaixo do microscópio normativo, as respostas possíveis se reproduzem com a mesma velocidade que novas perguntas se apresentam: um cenário de incerteza reforçado pelo fato de que as diferentes regras, em suas múltiplas origens, só podem buscar coesão em princípios gerais, de conteúdo incerto, muitas vezes subjetivo.

Com todas essas transformações estruturais, os fundamentos do direito também precisam evoluir. Para conquistar corações e mentes, ele não se legitima mais pela sua origem estatal, régia ou parlamentar, exigindo-se a racionalização de sua operação. É preciso retirar sua legitimação dos instrumentos de aplicação da ordem jurídica sobre a vida privada.

A multiplicação e a fragmentação do direito e de suas fontes, aliada ao constante recurso a princípios gerais, dificultam que a ordem jurídica realize sua principal função: propiciar segurança e previsibilidade às relações sociais. O direito material e o Estado, como seu principal ator, engrossam hoje as trincheiras da pós-modernidade, como novos polos propagadores de imprevisibilidade, ansiedade e insegurança. Com o declínio da coerência das normas e o incremento da incerteza, ganham relevo os institutos de aplicação do direito, como instrumento essencial para conferir previsibilidade, controle e legitimidade ao poder.

A compreensão clássica da legalidade deixa de ser suficiente, visto que restringe somente os fins estatais. O direito precisa deixar de se ocupar apenas com metas, para alcançar também os seus instrumentos. Assim, neste século, a expansão da processualidade se impõe pela necessidade de Estados e sociedades encontrarem novos caminhos para a democracia. A participação do particular se legitima pela ponderação dos interesses privados atingidos pelo Estado, mas não se resume a isso. Hoje, uma das funções do processo é também a democratização da escolha entre os mais diferentes interesses públicosem jogo, com a preservação dos interesses privados legítimos, que precisam (sobre)viver à sua sombra.

É sob o peso dessa relevância que precisamos avaliar a reforma da legislação de processo administrativo que se encontra em marcha, no Projeto de Lei 2.481/22, para que ela opere no sentido de incrementar a legitimidade do Estado pós-moderno. Uma legislação que seja contemporânea, não por ser recente, mas por estar à altura das necessidades de seu tempo.


¹ Demian Guedes é advogado. Doutor em direito pela UERJ. Visiting scholar no Max Planck Institute for Public Law. Autor dos livros Autoritarismo e Estado no Brasil (2016) e Processo Administrativo e Democracia (2007).
Esse é o segundo de uma série de artigos acerca dos pontos de atenção do processo administrativo contemporâneo no Brasil, tendo em vista a reforma da sua legislação (Lei nº 9.784/1999).

² OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública – o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003.

³ CHEVALIER, Jacques. L’État de Droit. Paris: Montscherestien, 2010. E, do mesmo autor, Estado pós-moderno. Tradução: Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009.